Apenas um lugar para a gente pensar junto...

sábado, 2 de agosto de 2008

Veio de Liberdade

Texto classificado em 9º lugar no I Concurso Eduardo Campos de Crônicas e Contos da ACE (Associação Cearense de Escritores), 2008.
Chegava por volta de onze e meia todo dia. Sua entrada triunfal era sempre a mesma: sapatos para um lado; meias que voavam sem direção; o caderno em arremesso para cima do guarda-roupa e a farda suada que acabava secando de qualquer jeito sobre o encosto da cadeira.
Não escondia a alegria do retorno. Parecia que seu tempo de vida se resumia a ardente expectativa da dimensão de liberdade que o aguardava. Vinha da escola como que quebrando os grilhões e o seu despir-se parecia mais um grito de independência que uma simples conveniência doméstica.
Mal conseguia comer. Mastigava apressadamente com saudade da vida. Por isso quase que só engolia, não se dando praticamente à oportunidade de saborear o que a língua testemunhava.
Mantinha sua atenção para o lado de fora da casa. Ouvia atento a todos os ruídos tentando decifrá-los para não ser pego de surpresa. Mesmo ainda tão jovem, apenas doze anos, já sabia que a vida não é devedora de ninguém e se adiantava sempre ao que esperava encontrar, indo à direção dele.
Distinguia-se dos demais garotos da vizinhança que se criaram por ali. Não se satisfazia com bilas, arraias, piões ou bola-de-meia; tinha natureza chucra, indomável e não se contentava em amofinar-se com brincadeiras simplórias. Seu negócio era sentir o ar lhe cortando a cara, desalinhando os seus cabelos e desafiando a sua coragem ainda incipiente.
Enganava a sorte como podia. Não fosse sua ousadia, o que lhe estava reservado condenava-o à triste sina que acompanhava a sua família desde que chegara à cidade grande, apenas o suplício de sobreviver. Com um pai em uma ocupação informal, mãe lavadeira, quatro irmãos, ficando ele justamente no meio da prole, e uma casinha que teimava em permanecer em pé, vivia por ser isso da vontade de Deus e apenas a Ele também se devia a sua permanência por este mundo, segundo ele sempre ouvia.
Suas aventuras eram o que mais se assemelhava às inúmeras histórias contadas a cada final de tarde por seu avô quando ainda era vivo. Quantas vezes, dentro da nuvem de fumaça produzida por um cigarro de palha, viajava nos relatos de suas origens, quando sua família fazia do gibão e do chapéu de couro o seu ganha-pão. Em cima do cavalo à busca das reses perdidas, seus heróis figuravam o ante-modelo do que vivia agora; sua alma era selvagem demais para ficar contida entre pilastras de concreto.
Apenas quinze minutos o afastava do momento em que entrava em casa e sua nova saída. Após o ritual ligeiro a que se submetia por conta do medo das punições da mãe, logo deixava atrás de si seu lar para ir ao encontro dos seus devaneios.
Alguns instantes então e ele já se sentia plenamente feliz. Era uma bela figura aos que o viam: uma quase estátua de ébano, firme como uma rocha. Só ele e o vento que o ameaçava mas que sempre era vencido.
Morresse ali, morria satisfeito. Não tinha pai nem mãe; laços nem limites; domicílio ou escola. Naquele palco ele fazia um sólo em um cenário que protagonizava absoluto. Viver resumia-se a esses momentos. De espírito indócil, por seus poros emanava a convicção que mais valia viver sob a égide do inesperado, que ao abrigo de um telhado cinzento pendente sobre ele. Da existência só o instinto e no peito um grande desejo de ir mais além, assim mesmo: acelerado, equilibrando-se, sobre o teto metálico de mais um vagão.
Ana Valéria

sábado, 26 de julho de 2008

Ser Valente

Uma frase do filme Valente me tocou de forma especial. Quando o policial pergunta à personagem interpretada por Jodie Foster como ela conseguiu superar tão rápido o trauma sofrido pelo assassinato estúpido de seu quase-esposo (eles iriam casar poucos dias antes da fatalidade), ela responde: – Não superei, me transformei em outra pessoa.
De fato ela havia se tornado uma fria justiceira. Migrou da ingenuidade de uma radialista sonhadora e romântica a uma dura e implacável crítica de uma sociedade cruel, com sangue nas mãos.
Mas, por que aquela frase foi tão tocante pra mim?
Pensando bem, acho mesmo que ninguém sai ileso de perdas. Vendo pelo ponto de vista dela, ninguém volta mais a sonhar os mesmos sonhos e a ser a mesma pessoa. Não digo que necessariamente nos tornemos pessoas piores, não é esse o ponto. Mas hoje acredito que proporcional à dimensão da perda, é gerado algo em nós que antes não existia.
Sabia antigamente que o mesmo sol que amolece a manteiga, endurece o tijolo. Hoje comprovo isso nas minhas entranhas. A matéria inicial permanece a mesma, mas a consistência é alterada. Em alguns casos, o resultado final é uma completa incógnita, só o tempo dirá.
No filme aquela mulher não se torna apenas uma assassina, ela perde o viço de existir, o prazer do belo, a vontade de viver... Por isso matar torna-se tão banal. Seu sofrimento não azedou exclusivamente uma parte de si. Ele não fez concessões.
Minha esperança é que nossa vida, na medida em que nos matura com seus altos e baixos, não nos permita perder a dulcilidade e que mesmo as dores mais imprevisíveis e aparentemente insuperáveis, não nos roube a esperança de fazermo-nos sempre um pouco melhores.
Certamente deixamos de sonhar os mesmos sonhos, mas não a capacidade de sonhar (como disse um amigo meu).
É o mínimo que merecemos.

Ana Valéria

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Mundo Adulto

Hoje fui invadida por sentimentos peculiares. Observando umas crianças que brincavam numa praça bem à frente de onde eu estava, tive uma saudade danada de subir em árvore. Nem sabia como na época isso me fazia bem até ver uma garotada subindo hoje pela manhã. Senti uma doce e melancólica nostalgia.
Lembrei-me da criança que fui e de como eu me sentia feliz "derrubando" troncos. Lembrei-me da alegria que dava o estar desbravando a altura e o prazer do desafio alcançado.
Lembrei-me com gozo na alma da emoção de me ver lá em cima em meio às folhas e, ao olhar pra baixo, conferir orgulhosamente o "caminho" percorrido até ali.
Fiquei com inveja daquelas crianças, uma doce inveja.
Imagine, eu, uma adulta, ao observá-las por trás de uma vidraça de onde trabalho, pensando que certamente elas nem sabem, como eu também não na mesma época, como são livres. Talvez não sejam donos do próprio nariz, nem possam dormir a hora que bem entendem, ou ainda não possam ir e vir de onde quiserem sem ter que dar satisfação a ninguém, como eu posso, mas o que é tudo isso frente a inocência que se vai de não se sentir feliz independente dessas coisas?
Mais certa está uma deficiente mental obesa e desalinhada que passou por mim esta manhã com um sonoro sorriso gratuito. Se é pra crescer sem poder sorrir a todos sem motivo aparente nem sentir-se livre mais com tanta facilidade, qual a vantagem afinal do mundo adulto e dito normal?
Hoje mando em mim, faço o que bem entendo, mas daria tudo só para poder ter de volta o sentimento de liberdade e alegria de outrora com tão pouco ou quase nada.

Ana Valéria

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Esses crentes e suas manias

Pra sair bem na fita os crentes vão criando algumas adaptações que se não são completamente antagônicas ao texto bíblico são, no mínimo, sem sentido. Eis algumas delas:
Jesus disse: "Quando fores orar entra no teu quarto, fecha a porta e teu Pai que vê em secreto..."
Adaptação contemporânea: "Quando fores orar fecha os olhos, começa a se balançar pra frente e pra trás, elevando a ponta dos pés, estala a língua, emposta a voz e diz: oh, Senhor..."

Jesus disse: "Os verdadeiros adoradores adorarão em espírito e em verdade..."
Adaptação contemporânea: 1.Os verdadeiros adoradores são os que fazem um curso de uma determinada igreja...
2. "Só há adoração se se levantar as mãos, fechar os olhos e houver o acompanhamento de uma suave música."
3. Na ordem do culto tem que vir primeiro o louvor e só depois a adoração."

Jesus disse que estaria conosco até a consumação dos séculos e que nunca nos abandonaria.
Adaptação contemporânea: No início da oração dizer: "Senhor, entrando agora em Sua presença..." E o próximo a orar acrescenta: Continuando ainda em Sua presença..." Aí eu pergunto: E depois de orar se sai da presença de Deus????

Só pra gente pensar.
Beijão.

Nota de Esclarecimento

A todos quantos possa interessar:
Eu estava sem pc, meu povo, por isso fiquei sem postar por algum tempo, mas voltou tudo ao normal e em breve estarei com mais algum texto. Beijão a todos.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Ensaio de um vôo de Liberdade

Nunca imaginei que fosse tão desafiante ser livre. Não falo da liberdade adquirida com a assinatura da pena de outrem. Falo, sim, do rompimento das próprias amarras; da derrubada dos muros que nos cerceiam psicologicamente e nos mantém estáticos frente aos novos horizontes.
Só posso deduzir que essas cercas emocionais, aparentemente invisíveis, são tão amplas quanto os anos que elas levaram para ser construídas e que não vai ser com um simples “gritinho” de uma cavalgadura numa margem ribeirinha que elas vão ceder.
Cheguei a pensar que, tal como o lobo que assombrava os três porquinhos, tombando as inúmeras casas que os abrigava com um sopro mais forte, castelos emocionais caíssem facilmente, bastando para isso que se enchesse o peito de ar. Ou que a simples mudança de um script pudesse exercer algum poder mágico e redentor numa história dolorosamente restrita.
Mas não é o contemplar de um horizonte largo por cima da cerca que a invalida, tampouco a vontade de ignorá-la que faz com que se pense que ela nunca tenha existido.
A áurea princesa não conseguiu libertar emocionalmente a geração que recebeu as benesses de sua canetada, nem o gesto “petrino” marginal transformou instantaneamente quem se acostumou a sempre pensar de forma provinciana. Isto porque esta “liberdade” foi parida por outros. Mas a autêntica brota do coração daquele que dela é privado; nasce como fruto da necessidade de alteração de um modus vivendi perenizado. E só consegue sonhar voando quem já voou ou quem conhece o sofrimento de tendo asas não poder usá-las.
As minhas já estão prontas. Consigo contemplar penas novas que durante tanto tempo foram podadas para manter-me presa ao chão. Os músculos, ainda que só recentemente com vigor novo, já aparentam ter condições de sustentar meu corpo solto no ar. Mas a mente precisa de mais do que isso.
É certo que a beira do cativeiro, que me fizeram acreditar ser um ninho, agora se insinua sem pudor e a visão de mais do que galhos secos e envergados me convida para um amplo vôo.
E eu nem sabia que podia voar...!
Contudo sei que o medo de altura ainda está presente. Olhar tanto para baixo como para cima estremece minha estrutura. Talvez por que me acostumaram a pensar que o mundo tem poucos centímetros ou que voar não é para os da minha espécie.
Mas ouso pensar e desejar.
Sinto o cheiro do azul me chamando para um novo existir, desafiando tudo o que eu conheço. Melhor do que a segurança de um abrigo cinzento.
E se depois de enxergar além dos limites a mim impostos a tentativa de alçar novos ares, enfrentando todos os temores que decorrem do inusitado, não é legítima, ainda assim escolho morrer na queda que ter asas que nunca ensaiaram planar.
Por fim, agora em minha alma livre, mesmo ainda aprisionada, me recuso a simplesmente voltar a ciscar.


Ana Valéria

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Uvas-passa (anônimo)

Os frutos verdes são promessas. Ainda há muito a desenvolver e aperfeiçoar. Nesse estágio, são rijos e azedos; inaptos para o consumo. Depois, tornam-se "de vez". Crescem, embelezam-se, a caminho da plenitude, mas ainda precisam maturar a ponto de servirem ao deleite do consumidor. Amadurecem e são então colhidos para alimentar homens, pássaros e outros seres vivos, aos quais ofertam energia e vigor.
Os maduros estão plenos. Macios, doces, são os mais apreciados. Pode acontecer de amadurecerem, porém não serem apanhados. Envelhecem no pedúnculo até caírem, mas liberam as sementes que fecundarão a terra para então renascerem.
Alguns, colhidos em sua maturidade, escapam da degustação e são esquecidos em um canto qualquer até apodrecerem. Na sequência, seu destino será o lixo, sem ter completado o ciclo de vida ou deixado sementes fecundas.
Todavia, as uvas-passa são exemplos de que é possível outra sorte. Não consumidas em sua plenitude, as uvas sofrem um processo próprio de envelhecimento, murcham, mas continuam em apefeiçoamento, mais doces, tão saborosas quanto seu passado maduro.
Hoje, as uvas-passa, ornam bolos de casamento e são finos recursos de decoração. Ganham, assim, o merecido destaque nas mesas e ocasiões distintas. Com a vantagem adicional de, após seu apurado deguste, ainda oferecer a semente para as próximas gerações. Nesse princípio, também vinho tinto envelhece pacientemente em tonéis de carvalho e são aprecisadíssimos.
Quando o ser humano maduro consegue transcender a (i)maturidade, torna-se uma uva-passa. Sabendo tirar as lições de todas as fases e buscando a depuração e a expressão dessa experiência, participará do mundo de forma duradoura e significativa, oferecendo doçura e requinte.
O segredo reside em colher-se como fruta madura, antes que apodreça, aceitar o envelhecimento - de preferência, sem cirurgia plástica; ser maleável, generosa e compreender que seus potenciais e suas limitações são formas que vão além do amadurecer em busca da sabedoria.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Quando me amei de verdade (Charles Chaplin)

Quando me amei de verdade, compreendi que, em qualquer circunstância, eu estava no lugar certo, na hora certa, no momento exato. Então pude relaxar.
Hoje sei que isso tem nome... auto-estima.
Quando me amei de verdade, pude perceber que minha angústia, meu sofrimento emocional, não passa de um sinal que estou indo contra as minhas verdades.
Hoje sei que isso é... autenticidade.
Quando me amei de verdade, parei de desejar que minha vida fosse diferente e comecei a ver que tudo o que acontece contribui para o meu crescimento.
Hoje chamo isso de... amadurecimento.
Quando me amei de verdade, comecei a perceber como é ofensivo tentar forçar alguma situação ou alguém apenas para realizar aquilo que desejo, mesmo sabendo qu não é o momento ou a pessoa não está preparada, inclusive eu mesmo.
Hoje sei que o nome disso é... respeito.
Quando me amei de verdade, comecei a me livrar de tudo que não fosse saudável... pessoas, tarefas, tudo e qualquer coisa que me pudesse para baixo. De início minha razão chamou essa atitude de egoísmo. Hoje sei que se chama... amor-próprio.
Quando me amei de verdade,deixei de temer meu tempo livre e desisti de fazer grandes planos, abandonei os projetos megalômanos de futuro. Agora faço o que acho certo, o que gosto, quando quero e no meu próprio ritmo. Hoje sei que isso é... simplicidade.
Quando me amei de verdade, desisti de querer ter sempre razão e, com isso, errei menos vezes. Hoje descobri a... humildade.
Quando me amei de verdade, desisti de ficar revivendo o passado e de me preocupar com o futuro. Agora, me mantenho no presente, que é quando a vida acontece.
Hoje, vivo um dia de cada vez. Isso é... plenitude.
Quando me amei de verdade, percebi que minha mente pode me atormentar e me decepcionar, mas quando eu a coloco a serviço do meu coração, ela se torna uma grande e valiosa aliada.
Tudo isso é... saber viver!
"Não devemos ter medo dos confrontos. Até os planetas se chocam e do caos nascem as estrelas".

sábado, 12 de abril de 2008

Coragem

Creio que nunca o mundo precisou tanto de coragem como atualmente.
Há muito tempo, ela era necessária para sair da caverna e enfrentar os bichos que povoavam o ambiente e disputavam com o gênero humano o "pão nosso de cada dia".
Também foi importante, em outras épocas, no embate contra àqueles que queriam invadir reinos e destruir domínios.
No entanto, houve época que sua necessidade foi mais subjetiva. Ela era imprescindível para o enfrentamento das hostes seculares que mantinham a todos como réus com armas ideológicas de poder. Galileu que o diga.
Contudo, sua imensa necessidade hoje não é mais para a garantia do sustento diário ou na preservação de fronteiras ou ainda para sobrepujar idéias dominantes, mas é simplesmente para ser.
Em um mundo onde o que mais importa é o que aparento, o que tenho e o que posso comprar, o veículo com o qual me desloco, os locais que frequento ou as pessoas com quem me "relaciono"... ousar aparecer sem máscaras e de peito aberto é ter coragem demais.
Agora é proibido expor as lágrimas, desafogar o nó da garganta, sentir dor, vulnerabilizar-se com o amor, mostrar-se saudosa, chorar perdas ou precisar de "alguéns" ao lado. Plastificou-se a humanidade.
Em algum lugar no caminho da nossa dita "evolução" nos automatizamos para nos tornarmos de aço, com emoções geladas e distantes, ao mesmo tempo em que nos afastamos, nos digitalizando. Mas quem disse que quero ser apenas o que posso ter ou a extensão de programas a serem executados ou viver escondida sob "drives" do que unicamente pode ser acessado ou exposto em imagens de plasma e LCD do que pode ser visualizado em mim?
Quero coragem para ser eu mesma e, mais ainda, quero a coragem para "deletar" o que me torna menos gente secando-me o potencial de me relacionar, mesmo que para isso corra os riscos de enfrentar os bichos das cavernas atuais.

Ana Valéria

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Ser Humano

Você já ouviu a seguinte afirmativa: "Deus é um grande piadista" ou ainda "Deus só pode ter muito senso de humor"? Eu sim, inúmeras vezes. E, sabe, com todo respeito, acho que é isso mesmo, senão ele já teria mandado descer fogo do céu e fazer churrasquinho desse bando de bípedes pelados que dizem ser coroa de sua criação, mas que muitas vezes parecem mais ser os espinhos dessa coroa.
Somos capazes das cenas mais patéticas ao mesmo tempo em que cometemos verdadeiras atrocidades incompatíveis até mesmo aos animais mais selvagens - nenhum desses seria capaz de livrar-se de um filhote seu, arremessando-o pela janela por simples maldade.
Já reparou nas caras e bocas de um adulto diante de um bebê? Quantos mungangos, esquisitices e vozinhas em falsetes...? Já reparou na quantidade de juras, palavras melosas e inabaláveis promessas de casais de namorados,que mal conseguem resistir aos primeiros atritos? Ou na luta frenética de qualquer um para parecer-se sóbrio depois de um alto teor alcoólico estar inundando seus fluidos orgânicos? Já parou para observar a tentativa de discrição de alguém tentando limpar o nariz dentro de um ônibus sem querer ser notado? Ou no discretíssimo gesto de simplesmente tirar a calcinha que se atreveu a ir um pouquinho mais além de seu limite? E na cara de alguém que acabou de acordar, ainda remelento, ou de um outro que aguenta todos os resultados de sua digestão sem poder demonstrar que está maluco por um canto mais reservado para aliviar-se?
Realmente o ser humano é muito estranho e, ou Deus de fato é dotado de um grande senso de humor, ou não passamos de esquisitos seres representando constantentemente o "irrepresentável": uns tentando não ser para os outros nada mais nada menos do que somos: simplesmente humanos... peculiaridade esta que justamente alegra muito a Deus.

Ana Valéria

terça-feira, 8 de abril de 2008

Simplesmente viver

Tenho percebido a vida adulta me presentear com algumas doçuras. Digo isso porque havia transformado essa fase da minha vida como por demais responsável, dura, monocromática e insossa, principalmente se comparada com a minha infância. Explico-me.
Talvez essa minha concepção seja por nos vermos nessa época "agraciados" com toda a sorte de mazelas que vêm a reboque do que há de melhor a ser vivido também. Se chega a alegria do matrimônio, com ela vem também a fragilidade instável da convivência com alguém a quem entregamos tanto e as vezes conhecemos tão pouco; se vêm os filhos, com eles surgem as noites mal-dormidas, sejam pelas doenças ou pelo espectro de terror sempre presente de ver nossos pequenos aos poucos sendo entregues aos infortúnios de um mundo tão cruel; se o emprego aparece para nos tornar independentes, lembra-nos mensalmente das contas a serem pagas, e assim por diante... Ah, que saudade da infância!
Contudo, de uns tempos para cá, não sei se a minha sensibilidade tem se aguçado ou se é a idade que, precocemente, é claro, já tem me pregado peças de pura senilidade. O fato é que o alvorecer tem sido especial para mim porque não mais só o vejo, mas o escuto sob o gorjeio de muitos pássaros que parecem recepcioná-lo. O ruído dos carros cruzando o asfalto transformou-se repentinamente num barulho semelhante ao das ondas do mar, num indo e vindo constante. E por falar em mar, passei a sentir-me, ao tocar sua superfície na praia, como sendo saudada por cada onda que de mim se aproxima, chamando-me para dele desfrutar em sua imensidão. Voltei ainda a enxergar arco-íris riscando o céu e a contemplar a brancura das nuvens como "bolas" de espuma de barbear...
Não sei o que há comigo. Mas, acho que nem quero mesmo saber. Como também não quero mais voltar a passar os dias sem reverenciar a vida, que, ainda que algumas vezes, seja de uma vileza tão grande, voltou a mostrar-me puerilmente em sua diversidade o que há de melhor em simplesmente viver.

Ana Valéria

domingo, 6 de abril de 2008

Solidão

Cansaço, exaustão, pungência...
Não sabia que a solidão tinha esse poder destruidor.
Corrói por dentro, destrói a alma, apaga a luz.
Melhor é morrer, nela não há consciência e isso "alivia" a dor.
Ver noutros a felicidade que a nós não nos foi favorecida incomoda
E na fuga dessa visão apunhalamo-nos em dor maior por preferir-se o nada
Saber que do outro lado há risos, olhares cruzados, dedos entrelaçados...
Torna mais dilacerante o que os outros podem sequer mensurar
Só sabe quem sente.
E não há outra maneira de saber, nem se dela pudesse se fazer escolha,
Porque seria apenas a busca por ficar só, jamais solidão.