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sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

RELIGIÃO E FAMÍLIA

Quanto mais tempo passo na igreja menos entendo a religião (e é porque já se vão mais de 25 anos de militância)
Penso que fazer parte dessa instituição seria algo como ser família: um misto de paixões vivido a cada encontro. Sem exageros passionais, é claro.
Mas seria fácil demais. Inventaram assim as regras, doutrinas, liturgias, credos, catecismos e coisas semelhantes, que, se não ocupando o seu devido papel secundário, matam qualquer boa relação eclesiástico-familiar.
Não poderíamos apenas acolher e sermos acolhidos, como acontece num domingo na casa do primo que nos oferece uma feijoada como desculpa para ver todo mundo junto? Não poderíamos simplesmente reconhecermo-nos como desafortunadamente imperfeitos e, por isso mesmo, devedores sempre uns aos outros? Não poderíamos apenas celebrar a vida, compartilhando com o outro este dom maravilhoso?
Mas não, criamos imperativos recheados de senões para tornarmos nossa relação quase intragável ou pelo menos de difícil convivência.
Que diferença faz o dia em que nos reunimos? Que sentido tem a aparência externa se somos irmãos? Por que tantas imposições como se fôssemos seres acéfalos irremediavelmente perdidos e eternamente carentes de supervisão? Por que tanto jogo de culpa ou promessas de manipulação numa ilusória barganha? Pra que tanto falatório e tão pouco cuidado, contato, aceitação?
De fato não entendo o papel da religião. Mais: acho-a completamente dispensável e desagradavelmente inútil.
Numa relação em que me vejo igualmente responsável pelo outro não há necessidade de regras para uma boa convivência, só do amor que nos une bem praticado, gastado, como uma vela que se consome ao iluminar. 
Duvido que em uma circunstância como essa alguém ainda vai precisar dizer o que não deve ser feito ou simplesmente o que se deve ser. Duvido que ainda se precise dessa invenção!


Texto publicado na coluna Espiritualidade do jornal O Povo, em 21/05/2011, vide:
http://www.opovo.com.br/app/opovo/espiritualidade/2011/05/21/noticiaespiritualidadejornal,2247431/religiao-e-familia.shtml

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Daltonismo Religioso (II) *

Desenvolvendo mais um pouquinho o tema do daltonismo.
Creio que você concorda comigo que Jesus não deixou nada escrito. A única vez que o vimos escrevendo foi no episódio da mulher adúltera trazida pelos religiosos, e o palco de escrita era a areia. Nada mais efêmero! Mas, por que estou mencionando isso? Para lembrar que todos os relatos neotestamentários estão direta ou indiretamente relacionados com seus discursos, mas nunca saíram de sua própria pena. Nunca, absolutamente jamais, foram registrados por ele.
Se compreendemos que tudo que se passa ao nosso redor sofre um processo de interpretação e que esse está proporcionalmente relacionado ao que entendemos de mundo, nada está isento ao nosso "daltonismo interpretativo". Compreende?
Ora, some-se às palavras de Jesus o conhecimento de mundo de cada um dos apóstolos e você terá uma compreensão específica ao que fora dito, como uma espécie de encaixe perfeito ao quebra-cabeça de cada vida ali.
Não estou afirmando que necessariamente as compreensões obtidas por eles estejam em conflito ao que foi ensinado por Cristo se colocadas lado a lado, mas sim que não se pode extrair do que foi entendido pelos evangelistas as precompreensões que cada um trazia consigo.
É mais do que claro que um homem letrado como Mateus (cobrador de impostos) não tem a mesma percepção de vida que um rude pescador chamado Pedro, porque ambos têm suas experiências, seus percalços e desafios que delinearam suas personalidades distintas. Daí a abordagem de Jesus ser apropriada a cada homem porque fala às necessidades específicas de cada um, como ainda hoje é.
Sentindo a urgência de que as suas palavras passassem às gerações seguintes os evangelhos foram escritos. Sugiram então vários registros, e dentre esses alguns chegaram até nós, contudo, todos feitos a partir de mãos de homens que viveram suas próprias experiências e que fizeram, portanto, suas próprias interpretações e pontes a partir do que fora ouvido e vivenciado.
Toda essa minha discussão é para mostrar que de maneira alguma podemos nos prender radicalmente aos escritos. Como já mencionei, em lugar nenhum há palavras ipsis literis de Cristo, por mais que elas convirjam em textos paralelos. Portanto, nos atermos a picuinhas literárias para discutirmos nossas diferenças é tão farisaico quanto foi nos tempos em que ele andou entre nós. Suas palavras foram justamente agudas e contundentes contra os que pretendiam fazer dest sentenças de acusação. Longe de fronteiras eclesiásticas, guetos religiosos ou barricadas de abrigo contra os infiéis, seus ensinamentos extrapolaram esses limites.
Deus é maior que a Bíblia, porque esta o limita; maior que palavras religiosas porque estas são infiéis ao tentar retratá-lo. Maior do que qualquer compreensão.
Se pararmos de fazê-lo caber dentro de nossos conceitos interpretativos vesgos certamente muita coisa mudará dentro da cada um de nós. Posso até continuar vendo de maneira daltônica, mas terei consciência que eu e não o outro é que precisa ver-se como alguém a estar sempre adequando a visão.
Mais sensato seria se percebêssemos nosso olhar como restrito à pequenez de nosso mundo. Somos, cada um de nós, universos a parte, construídos por nós mesmos.
Dentro dessa perspectiva facetada da vida, ajudaríamos muito mais se ao invés de Livros usássemos óculos, respeitando-nos como partes de um todo muito maior.
A humanidade agradeceria.

* Texto publicado no jornal O Povo, na coluna Espiritualidade, no dia 02 de abril de 2011.
http://www.opovo.com.br/app/opovo/espiritualidade/2011/04/02/noticiaespiritualidadejornal,2120935/daltonismo-religioso-ii.shtml

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Daltonismo Religioso*

Esses dias lembrei-me de uma anomalia visual congênita bem peculiar: o daltonismo. Não sei se você sabe, mas daltonismo é o impedimento visual da percepção de uma ou mais cores. Dessa forma, quem apresenta esse distúrbio não percebe as cores como os de visão normal. Assim, há aqueles que não distinguem os tons verde e vermelho, outros o azul e o amarelo, outros que enxergam apenas em preto e branco e, por último, há os que percebem os tons das cores alterados. 
John Dalton

Lendo um pouco mais a respeito (aos que não sabem leciono Biologia, por isso meu interesse) uma coisa em especial me chamou a atenção: saber que John Dalton, o cientista que primeiro definiu tal distúrbio, era, ele mesmo, seu portador. Veja que interessante: não sei porque mas um dia ele notou que a cor que percebia em sua retina não era a mesma cor que outras pessoas viam e isso o levou à descoberta de seu distúrbio visual.
É intrigante pensar como alguém, sem ter algo como padrão a não ser a si mesmo, possa notar que não enxerga da mesma maneira que as demais pessoas. Como poderia saber que seu verde não era realmente verde, por exemplo? Ou que sua percepção de cores era toda alterada? 
Justiça seja feita, mais do que percepção científica é impossível não reconhecer  em Dalton humildade por ver em si mesmo e não nos outros um defeito de percepção. Ele era quem via errado.
Pensando bem e alargando esse assunto, gostaria de abranger esse tema para muitas outras percepções. 
Todos nós de uma certa maneira enxergamos a partir de nossos próprios pontos de vista. Não seria leviano  afirmar que tudo que enxergo é fruto de minha própria interpretação. Não há como algo ser visto sem qualquer influência daquilo que considero como padrão, mas, lembrando, sempre o meu padrão. Dessa forma, tudo sobre o que falo ou penso e a maneira como ajo deve-se à forma como leio e interpreto a minha realidade e tudo que está ao meu redor. Daí poder-se afirmar que tudo o que vejo é uma construção minha.
Diante disso a pergunta que nos cabe é a seguinte: por que meu ponto de vista é o certo? por que ele é o padrão? Por que o meu verde é que é o verde que determinará os demais? Desde que entendo o outro como alguém que tem também sua própria interpretação não poderia me arvorar do direito de afirmar que o certo é o que penso, o que EU vejo.
Sei que muitas coisas nos servem de parâmetro, mas até determinados padrões são construções culturais, sociais e/ou religiosas, portanto, deveriam ser encarados como uma trilha a ser perseguida e não como trilho. Qualquer expectativa além disso envereda-se pelo perigoso caminho do fanatismo.
Não me tenha por relativista. Sinceramente não é isso que quero mostrar. Apenas desejo destacar a necessidade de vermo-nos como alvos de misericórdia e complacência uns para com os outros em nossas sempre parciais interpretações. Afinal, o outro também vê, assim como eu. 
Só há uma coisa absoluta a ser considerada em qualquer caso: o amor. Portanto, se até a religião que abraço me leva a posições intransigentes e intolerantes em relação ao outro, quem sabe não está mais do que na hora de rever no que ando crendo. Possivelmente me descobrirei um daltônico.


Figura do teste de Ishihara, método utilizado para diagnosticar o daltonismo. O número 8 somente é vísivel para as pessoas de visão normal.
* Texto publicado no jornal O POVO
Dia 26 de fevereiro de 2011
Dia 05 de março de 2011