Apenas um lugar para a gente pensar junto...

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

SER HUMANO


Pense um pouco e pondere comigo:
1. Como as irmãs de Lázaro se sentiram por Jesus não ter atendido imediatamente ao seu pedido de socorro, sabendo que ele estava a menos de trinta minutos de distância de Betânia? (João 11)
2. O que passou pela cabeça de Pedro ao ver-se flagrado por Jesus após o canto do galo que denunciava sua traição? (Lucas 22)
3. Como se sentiu aquele pai que ao rogar pela cura de seu filho doente em outra cidade, ouviu que podia retornar que o garoto estaria curado? (João 4)
4. Qual terá sido a reação da viúva de Naim ao ver um estranho se aproximar do caixão de seu filho de forma furtiva, minutos antes do restauração da vida do rapaz? (Lucas 7)
5. Como os discípulos olharam para Jesus ao vê-lo dormir enquanto o barco onde estavam se enchia ao ser açoitado pelas ondas? (Marcos 4)
7. O que Pedro, João e Tiago sentiram ao ver Jesus chorando e rogando por sua própria vida em sua última noite? (Mateus 26)
6. Qual o sentimento daqueles mesmos discípulos no Getsêmani ao se perceberem tendo dedicado três anos de suas vidas a um profeta e o verem sendo levado sem qualquer reação ao encontro da morte? (Mateus 26)

Esses episódios são apenas alguns dos exemplos bíblicos que passam despercebidos por nós no aspecto da emoção humana. Eu não hesito em afirmar que ali estavam presentes a decepção, revolta, angústia, pavor e coisas semelhantes. Sintomas que denunciam tão somente a humanidade daqueles personagens.
Nenhum daqueles homens e mulheres eram "super qualquer coisa", mas pessoas de carne e osso enfrentando seus dilemas mais profundos ao se depararem com uma pessoa de quem esperavam, muito provavelmente, uma reação diferente, ou talvez, em um primeiro momento, mais especial.
As irmãs de Lázaro, como eram muito amadas pelo Mestre, certamente esperaram um tratamento diferenciado. Pedro, uma reprimenda imediata vinda dos céus. Aquele pai deve ter esperado mais atenção de Jesus. A viúva certamente se sentiu ultrajada. Os discípulos no barco imaginaram que suas vidas não tinha o menor valor. E os três, ao verem a cena da oração, decepcionaram-se com a fragilidade de alguém que várias vezes se mostrou inabalável e provavelmente lamentaram o tempo que perderam com ele. São todas cenas com cheiro de gente!
Admira-me muito cobrarmos de nós mesmos e dos outros reações diferentes, como se fôssemos melhores que aqueles que conviveram ou tiveram um encontro real com Cristo. A nós é proibido emoções semelhantes como se não nos corresse nas veias sangue. Pura pretensão!
Não me atrevo a ir além daqueles porque não me vejo em situação mais privilegiada. Sou tão humana quanto. Talvez o que nos distinga deles seja a visão posterior de tudo com a certeza da motivação que havia por trás, a própria Bíblia nos esclarece, mas isso não precisa ser necessariamente uma vantagem porque a distância também embota a cor do momento.
Por ser gente dou-me o direito de duvidar, de frustrar-me, de impacientar-me, porque não posso ser diferente nem quero me neurotizar. Preciso diariamente da misericórdia divina porque são essas mesmas reações que me lembram do fosso que há entre nós e Ele.
Sejamos mais maduros. Não alcançamos ainda a estatura de perfeição que nos está reservada e enquanto estivermos por aqui é assim que será, por mais que almejemos o contrário. Querermos diferente é tornarmo-nos candidato à hipocrisia mais deslavada ou a uma vida patética de mero cinismo religioso, o que não valeria um tostão na prática cristã.

Ana Valéria

Texto publicado no jornal O Povo, com o título "Apenas Ser Humano" em 16 de abril de 2011
http://www.opovo.com.br/app/opovo/espiritualidade/2011/04/16/noticiaespiritualidadejornal,2128142/apenas-ser-humano.shtml

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Naufrágio

Ainda esses dias estava me lembrando de um momento vivido na minha infância. Quando menina era apavorada com histórias de fim do mundo. Essas coisas chegavam a me tirar o sono. Recordo então que certo dia uma outra criança veio me falar justamente sobre a certeza que um dia o mundo deixaria de existir com fogo, tirando-me a paz. Fiquei em pânico, não podia acreditar! Pensei logo que precisava me certificar da veracidade daquela informação. Dessa forma, com a expectativa da destruição vindoura, fiz o que qualquer criança faz: procurei meu pai. Na época talvez tivesse uns oito anos.
Diante do meu questionamento e, talvez, pela minha cara de pavor, ele compreensivelmente logo procurou sanar todas as minhas angústias e me afirmou, com a certeza que só os pais têm, que o mundo nunca se acabaria, que quem se acaba são as pessoas.
Você não tem idéia de como isso me tranquilizou. Assumi completamente a sua fala: o mundo não vai acabar! e não deixei mais que me apavorassem com aquele tipo de vaticínio descabido.
Por que estou falando sobre isso? Para dizer que sinto falta dessa época. Época em que a afirmação de meu pai era suficiente para me tranquilizar a alma. Época em que bastava a certeza de alguém para que essa passase a ser minha também. Época de uma doce ingenuidade. Época em que a verdade era uma certeza inquestionável e plenamente aceitável. Mas, essa menina deixou de existir.
Hoje duvido de quase tudo e sofro com isso. Às vezes a ignorância é terapêutica pois nos dá algo a que nos agarrarmos, nem que seja à convicção do outro. Por isso, sinto saudade de mim mesma, da serenidade de um mar domado, principalmente no quesito religião.
Passeio entre rincões sagrados hoje e não consigo mais ter as mesmas certezas de vinte anos atrás. Duvido de muitas letras de músicas cristãs; escuto com desconfiança a fala de muitos líderes engravatados atrás de seus púlpitos elevados; ponho em xeque muitas afirmações de best-sellers gospel; sinto náuseas ao assistir alguns programas, ditos, evangelísticos e não me sinto mais à vontade em lugares que antes para mim eram tradicionalmente cantos de presença do divino.
Minha devoção à Bíblia passou a ter outro sabor: matizaram intensamente minha visão do mundo, tornando-o mais humano e menos pio. Também já não consigo fazer com que certas coisas caibam absolutamente dentro de afirmações livrescas, porque vejo-as maiores que essas. E já não tenho mais resposta para tudo, ou, pelo menos, dou-me o direito de não tentar mais ter. Dessa forma, vejo-me constantemente assaltada por dúvidas avassaladoras que me tomam as únicas "certezas" que ainda carrego, fazendo-me sentir, em muitos aspectos,  inveja da calmaria em que vivia.
Nos dias da minha infância, bastava correr aos braços do meu pai. Hoje isso já não me basta, aquela doce passividade perdeu-se com o tempo e a experiência. Sou naufrágios em pessoa. Esgarço-me diariamente. Contudo, é certo que de algum modo é bem mais doloroso viver assim. A "não-ignorância" tem seu preço. Mas, sinceramente, ainda prefiro estar como estou a me ver tão facilmente carregada de um lado para o outro, à deriva, por convicções propagadas por outros, que não minhas.

Texto publicado no jornal O Povo, coluna espiritualidade, em 16/07/2011:
http://www.opovo.com.br/app/opovo/espiritualidade/2011/07/16/noticiaespiritualidadejornal,2268183/naufragio.shtml