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terça-feira, 2 de novembro de 2010

Naufrágio

Ainda esses dias estava me lembrando de um momento vivido na minha infância. Quando menina era apavorada com histórias de fim do mundo. Essas coisas chegavam a me tirar o sono. Recordo então que certo dia uma outra criança veio me falar justamente sobre a certeza que um dia o mundo deixaria de existir com fogo, tirando-me a paz. Fiquei em pânico, não podia acreditar! Pensei logo que precisava me certificar da veracidade daquela informação. Dessa forma, com a expectativa da destruição vindoura, fiz o que qualquer criança faz: procurei meu pai. Na época talvez tivesse uns oito anos.
Diante do meu questionamento e, talvez, pela minha cara de pavor, ele compreensivelmente logo procurou sanar todas as minhas angústias e me afirmou, com a certeza que só os pais têm, que o mundo nunca se acabaria, que quem se acaba são as pessoas.
Você não tem idéia de como isso me tranquilizou. Assumi completamente a sua fala: o mundo não vai acabar! e não deixei mais que me apavorassem com aquele tipo de vaticínio descabido.
Por que estou falando sobre isso? Para dizer que sinto falta dessa época. Época em que a afirmação de meu pai era suficiente para me tranquilizar a alma. Época em que bastava a certeza de alguém para que essa passase a ser minha também. Época de uma doce ingenuidade. Época em que a verdade era uma certeza inquestionável e plenamente aceitável. Mas, essa menina deixou de existir.
Hoje duvido de quase tudo e sofro com isso. Às vezes a ignorância é terapêutica pois nos dá algo a que nos agarrarmos, nem que seja à convicção do outro. Por isso, sinto saudade de mim mesma, da serenidade de um mar domado, principalmente no quesito religião.
Passeio entre rincões sagrados hoje e não consigo mais ter as mesmas certezas de vinte anos atrás. Duvido de muitas letras de músicas cristãs; escuto com desconfiança a fala de muitos líderes engravatados atrás de seus púlpitos elevados; ponho em xeque muitas afirmações de best-sellers gospel; sinto náuseas ao assistir alguns programas, ditos, evangelísticos e não me sinto mais à vontade em lugares que antes para mim eram tradicionalmente cantos de presença do divino.
Minha devoção à Bíblia passou a ter outro sabor: matizaram intensamente minha visão do mundo, tornando-o mais humano e menos pio. Também já não consigo fazer com que certas coisas caibam absolutamente dentro de afirmações livrescas, porque vejo-as maiores que essas. E já não tenho mais resposta para tudo, ou, pelo menos, dou-me o direito de não tentar mais ter. Dessa forma, vejo-me constantemente assaltada por dúvidas avassaladoras que me tomam as únicas "certezas" que ainda carrego, fazendo-me sentir, em muitos aspectos,  inveja da calmaria em que vivia.
Nos dias da minha infância, bastava correr aos braços do meu pai. Hoje isso já não me basta, aquela doce passividade perdeu-se com o tempo e a experiência. Sou naufrágios em pessoa. Esgarço-me diariamente. Contudo, é certo que de algum modo é bem mais doloroso viver assim. A "não-ignorância" tem seu preço. Mas, sinceramente, ainda prefiro estar como estou a me ver tão facilmente carregada de um lado para o outro, à deriva, por convicções propagadas por outros, que não minhas.

Texto publicado no jornal O Povo, coluna espiritualidade, em 16/07/2011:
http://www.opovo.com.br/app/opovo/espiritualidade/2011/07/16/noticiaespiritualidadejornal,2268183/naufragio.shtml

Um comentário:

... Mondego disse...

Excelente texto! Quando você começa a falar de religião... É mais ou menos como me sinto, sendo que quase sempre, vem um sentimento de culpa por ser tão resmungão e crítico ao invés de estar "engajado na obra".